I
A
tal pandemia de Covid-19 bagunçou tudo. Por força da legislação, e tão somente
por isso, não mais pôde abrir o seu renomado, suntuoso e disputado restaurante,
frequentado exclusivamente por pessoas economicamente selecionadas.
Então,
a situação mudou. Aliás, quase tudo mudou um pouco. Inclusive um clássico
demarcador histórico foi reconfigurado. Agora a.C.d.C. significa antes da
Covid-19 e depois da Covid-19.
Todos
os consultores empresariais globais eram taxativos: tempos de crise são
propícios para apostar, inovar, realizar mudanças radicais. Então, era a ocasião
perfeita para a fusão da necessidade com a oportunidade.
Tinha
uma equipe de colaborador@s mais do que excelente, de altissíssimo nível. Essa
equipe era, sabidamente, o segredo, ou melhor, a alma do seu negócio: honesta,
leal, criativa, aplicada, proativa, enfim, merecedora de todos os adjetivos
positivos possíveis existentes e dos ainda impossíveis por não terem sido inventados
pelos ideólogos da área digestão de pessoas.
Infelizmente,
demitiria uma grande parte dessa equipe, mas, fazer o quê? Amizade é amizade,
negócios são negócios. Considerando que todas as pessoas da equipe eram mais do
que simplesmente excelentes, ele não tinha necessidade de escolher quem vai e
quem fica. Aliás, isso era alentador: não precisaria ficar com uma espécie de
mácula na consciência, por ter demitido uma parte da sua fiel escuderia, ou
melhor, da alma do seu negócio, em pleno momento de crise, quando aquelas
pessoas mais precisavam manter seus empregos.
Chamou
a equipe, explicou, com uma “insustentável leveza”, a situação dilemática daquela
sua empresa e, como é esperado de um patrão sensível-democrático, ordenou que
decidissem entre si quem merecia continuar e quem deveria partir.
II
Algumas
pessoas da equipe acharam essa atitude do patrão no mínimo o máximo. Outras, simplesmente
lamentável. Outras, uma alta traição. Outras, uma mera fatalidade. Outras, uma
verdadeira provação. Outras, uma casual provocação. Umas, mais excêntricas, não
viram nada de anormal nessa dita crise, que é crônica e que se torna cada vez
mais aguda (se é que essa tal crise ainda poderia assim ser denominada!), nem
no posicionamento do patrão, pois isso é inerente à lógica do sistema, afinal,
‘empregado é empregado, patrão é patrão e não cola essa ideia de colaboração’.
Fazer
o quê? Surgiram várias propostas. Ficaria quem é chefe de família, quem tem crianças
pequenas, quem tem a mãe doente, quem pai não tem, quem tem isso, quem não tem aquilo,
quem outro aquilo poderia um dia ter. Uma pessoa, com verdadeiro espírito
colaborador, sugeriu que (auto)propusessem a redução dos próprios salários e de
outros direitos, para que todo mundo pudesse ficar e ganhar o pão de cada dia,
além de evitar a quebra da empresa. Outra, de índole empreendedora, entendia
que a solução era todo mundo pedir, voluntariamente, demissão, fazer cadastro
como MEI e passar a prestar serviços para o patrão, sem os ônus do ‘custo
Brasil’. Alguém complementou, propondo-se a trabalhar de graça, até que a
economia mundial ‘reaquecesse’ e a empresa ‘voltasse a respirar’. Outra propôs
a realização de uma corrente de prece e jejum pelo patrão e pelo país. Alguém
sugeriu um sorteio, considerado, por essa pessoa, a forma mais justa de decidir
quais cabeças mereciam ficar e quais deveriam rolar.
Mas,
acontece que na equipe havia umas pessoas excêntricas, “estranhas no ninho”,
que cantocavam em outra clave, aliás, em clave muy otra. Uma delas tinha lido, na sua infância, “O pato sem patrão”,
livro que ‘marcou’ a sua ‘vida’. Outra, inveterada leitora de Brecht, declamou,
desse poemeiro, “Esse desemprego”. Uma outra conhecia “Pamonha”, de Tchekhov. Fã
de Gonzaguinha, outra cantou “Comportamento geral”. Havia uma que assistira ao
filme “Si può fare” (“Dá pra fazer”).
Outra ouviu falar da Flaskô, da Fasinpat, da LIP e do Complexo Cooperativo de
Mondragón. Essas excêntricas pessoas não se contentaram em pensar em um outro
fim para a continuidade daquela mesma história. Apresentaram a possibilidade e
a necessidade de uma outra história, uma história muy otra, pautada pelos princípios da autogestão. Para essas
pessoas, até a pergunta deveria ser outra: ao invés de ‘fazer o quê?’, “O que
fazer?”
Discutiram.
Pensaram. Debateram. Foram. Voltaram. Foram novamente. Revoltaram. Enfim, chegaram
a uma intransigente conclusão. Eram, e todo mundo disso sabia, o segredo, a
alma daquele negócio. Momentos de crise, dizem, são propícios para apostar,
inovar, realizar mudanças radicais. Tempo de crise é tempo de sair do eixo, ser
excêntric@. Então, viram nessa dita crise um ímpeto para a perfeita síntese da
oportunidade com a necessidade. Afinal, não eram o segredo e a alma daquele
negócio?
Tod@s
abririam mão do emprego, mas manteriam seus trabalhos. a.C.d.C. Agora seriam ‘sóci@s’,
trabalhador@s livremente associad@s. Por causa justa, demitiram o patrão.
Dedicado a C.G.V. – “Ave, Caesar!”