Era
uma vez um tempo muito remoto. Tudo era remoto. Meditação remota. Cirurgias
remotas. Reiki remoto. Cerimônias remotas. Conselhos remotos. Cultos remotos. Remorsos
remotos. Telepatia remota. Concílios Remotos. Transes remotos. Controles
remotos. Ignorâncias remotas. EaD remoto. Interações remotas. Remoto era tudo. E,
como não (será, mesmo, que não?) poderia ser diferente, até as aulas
presenciais, remotas. Remotamente remotas.
O
sinal de entrada, remoto, soou. O remoto professor, remotamente, começou a sua
aula remota. Fez a chamada remotamente. Apresentou os costumeiros prolegômenos.
Porém, o arquivo com a apresentação da aula, gravado na área de trabalho do computador,
não abriu. Tentou o estepe, no pendrive l, que não foi reconhecido. Ou não se
reconheceu? Tentou o segundo pendrive, becape do backup, que se recusou a
remotear e preferiu formatado ser. O professor, então, apelou para os céus, ou
melhor, para as nuvens, que também não responderam, talvez por, deliberadamente,
terem optado por um ato de descondensação, ou pelo fato de a internet,
intencionalmente, ter (se) evaporizado.
Diante
desses previsíveis imprevistos, o professor, como sempre, tinha que “manejar” a
sala, já que, por um lado, os agentes de organização escolar estavam bem
remotos, mas, por outro, a Grande Irmã, pelas rédeas sociais, remotamente vigiava
todo mundo em todo o mundo.
Por
dar aula de mais de 30 matérias, de Biológicas, Exatas e Humanas, para mais de 400
salas e para mais de “cinquenta mil manos”, o professor, diante dos incidentes
com as tics, sequer lembrava o tema daquela aula. Das outras também não. Não
era dia de nada, assim, o professor instituiu, naquele exato instante, o Dia Intergaláctico
da Leitura e tomou essa cívica data como mote para improvisar uma atividade
para preencher os 50 notúrnicos minutos-luz de uma aula-hora.
Começou,
então, a desfilar nomes e breves comentários sobre alguns clássicos que ele
considerava importantes, ou melhor, imprescindíveis numa cesta básica literária
de alta qualidade, mesmo em pandêmicos e pandemônicos tempos da dita nova anormalidade
do covidoceno.
— Um
dos livros que eu gostaria de apresentar para vocês é “O alienista”, de Machado
de Assis, um livro q
— Já
ouvi falar desse livro, prof! Nossa! É bem loco esse, né? – Disse, sem levantar
a mão e sem pedir licença, uma estudante.
Após essa
indesejável interrupção, o professor retomou a sua explanação sobre o livro: Bom,
como eu estava falando... – E concluiu sua sinopse sobre esse livro.
— Um
outro livro que eu quero comentar é de autoria de Cervantes, “Dom Quixote de la
— Mancha!
Vixe, prof, desse também eu já ouvi falar!
E a saga
continuou. O professor foi apresentando – ou tentando apresentar – sua cesta
básica literária.
— “Quarto
de despejo”, de Carolina Maria de Jesus, uma
— Pó
crê! Muito doido! Desse também, prof, já ouvi falar! Aliás, quem nunca ouviu
falar desse?!
— “O
apocalipse dos trabalhadores”, de Valter Hugo Mãe, um autor que tem
— Mai
nem, prof, mai nem que eu não ouvi sobre esse! Óbvio que já!
— “Um
conto de duas cidades”, do renomado
— Do
Dickens, prof! Foi o melhor dos contos! Lógico que já ouvi falar dessa obra!
— Outro
é uma coletânea de textos de autores russos
— “Salada
russa”, prof! “Salada russa”! Também já ouvi falar dele!
— De
Eduardo Galeano, “O livro dos abraços”. Esse livr
— Aí,
sim, prof! Esse é o cara! É pira total! Esse também está na minha lista.
— “As
vinhas da ira”, de Steinbeck, um autor
— Muito
bom esse, prof!, também já ouvi falar desse daí! Ele foi perseguido, né?
— De
Elvira Lindo, “Manolito
— Gafotas!
Ouvi falar muito bem desse livro, prof! Uma vez eu quase peguei ele pra ler!
— “Enterrem
meu coração na curva do rio”, de Dee Brown, da década d
— Esse
é massa, prof! Já escutei sobre ele também!
— “O
homem que corrompeu Hadleyburg”, de Mark Twain, um autor estaduni
— Como
não, prof!? Certamente ele se inspirou na cidade em que moro! Claro que já ouvi
falar!
— Jane
Austen, “Orgulho e preconceito”
— Ah!,
esse também me soa muito familiar! Sem dúvida, já ouvi falar!
— “Os
ricos também morrem”, de Ferréz, de São Paulo, da zona
— Quebrada
Sul! Tô ligada nesse aí também, prof! Literatura bem marginal, né!?
— De Leonardo
Padura, “O homem que amava os cachorros”, um livro q
— Classicaço,
véi, classicaço total! Lógico que já ouvi falar desse também, prof!
— “Crime
e castigo”, de Dostoy
— evsky!
Autor de uma muca de livros! Até o Wandi Doratiotto fez uma música pra ele!
— De
um autor contemporâneo, Mia Couto, o livro “Venenos de deus, remédios do diabo”,
lanç
— Fala
sério, prof! Esse também é firmeza! Até a capa é coisa fina! Eu até achava que o
Mia era brasileiro, prof, vai vendo...
— Agora,
vou tentar falar para vocês sobre um famosíssimo conjunto de contos, intitulado
— Já
sei, prof! “As mil e uma noites”! Desse também eu já ouvi falar! Acho que todo
mundo deveria ler esse livro, prof!
A cada
título ou autor que o professor anunciava, aquela ‘Macabéa Desvairada’, híbrido
ser, toda empolgada, dizia a mesma coisa, com alguma variação de tom: “Desse eu
já ouvi falar, prof!”
Em um
determinado momento, o professor, muito irritado com essas indesejáveis e
impertinentes intervenções, e também receoso diante do risco de um eventual – aliás,
iminente – spoiler, antecipou-se, interrompendo
não só a sua magistral exposição literária, mas, também, aquele mantra macabeico
desvairadus, e deblaterou:
— Escuta
aqui, o dona ‘já ouvi falar’: todos os livros que eu menciono você diz que ‘já
ouviu falar’. Você só ‘ouviu falar’? Nunca leu nenhum, não? Dizendo doutra
forma, nem um você leu?
— Não,
prof. E não pretendo, por ora, lê-los.
Ademais, considerando que hoje é o Dia Intergaláctico da Leitura, eu gostaria
de, oportuna e publicamente, registrar que, se não fossem umas insistentes profas
que, durante as suas aulas, liam para a gente ouvir, nem da existência dessas
obras eu saberia e, então, sequer eu poderia, como hoje, com muito orgulho,
dizer-lhe que delas ‘já ouvi falar’.
Antes
que o professor tomasse as remotas providências disciplinares cabíveis em
tempos de ensino remoto, ela mandou mais uma carga remota:
— E, prof,
se você falar de algum livro mais, mas daqueles livros dos bons, que,
porventura – uma hipótese remotíssima –, eu ainda não tenha ouvido falar, asseguro-lhe,
sem titubear, que, se eu tivesse continuado a ter aulas com elas, eu,
indubitavelmente, já haveria de ter – pretérito do futuro de presente mais-que-imperfeito
– ouvido falar deles, ainda que remotamente. Ademais, prof, não me desafie,
não, porque nessa minha “bolsa amarela”, que trago aqui nessa minha
enciclopédica cachola, há muitos outros títulos, ou melhor, livros, dos quais,
com muito orgulho, ‘eu já ouvi falar’.
Singela,
despretensiosa e remotamente dedicado às três mosqueteiras andantes transgeracionais
da literaleitura, inclusive em tempos e temporalidades remotas: A.I.D.M,
F. R. P e L. F. L.
Literalleitura
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