I
Ela, etnocêntrica como (quase?) todo [o]
mundo, adorava alho. Alho, para ela, era do barulho. Ficava pirada quando
entrava no bloco do seu apartamento e sentia o cheiro de alho rescendendo pelos
corredores. Era como se ela desse um tapa na bhaghana! Apetite a mil. Abria o
apartamento e já ia laricando geral.
Etnocêntrica,
como (quase?) todo [o] mundo, tinha certeza de que seus gostos ou preferências
eram (ou seja, são!) universais.
Adorava, achava
o máximo aquela velha máxima, bastante sensocomunzada: ‘faça aos outros aquilo
que gostaria que fizessem com você’.
Aquele dia,
decidira, seria o dia de ela fazer sua desforra. Faria uma comida bem
temperadinha, com o cheiro daquela comida dos vizinhos do piso inferior.
Incorporou a
chefa das chefas, coisô alho na frigideira e mandou ver. O cheiro subiu como um
ofertório, rescendendo pelos corredores...
II
Ele,
autoconsiderado genioso, detestava alho. Achava alho nojento. Prepotente, como
(quase?) todo [o] mundo, achava seu des_gosto universal e tinha certeza de que
todo mundo tinha que acatar suas preferências. Alho remetia a fatos do passado
que preferia não lembrar, ou melhor, tentava esquecer. Freud talvez explicasse.
Talvez.
Considerava-se
linha dura. Achava que a humanidade era naturalmente má. “Pecado original”. Não
tinha jeito. Era sina. Era a sina. Era inerente_mente, ah!, sim! Assim, não
acreditava nesse papo de diálogo, entendimento... Com ele a coisa era assim:
“escreveu e não leu, o pau comeu”. “Olho por olho, dente por dente”. “In dubio,
pau no réu”. “Primeiro eu atiro, depois eu pergunto ou aviso”!
Para ele, a
coisa era muito objetiva. A fórmula era bem simples: “cada um no seu quadrado”.
Dito noutras palavras: “seu direito vai até onde começa o meu”. E, por várias
razões, principalmente porque era muito direito, considerava-se superior aos
outros, portanto, tinha direito a ter mais direitos que os outros. Julgava-se
até no direito de colocar uma faixa na janela do seu apartamento: “Pelo fim do
direito a ter direitos”!
Aquele cheiro de
alho, insuportável, começou a infectar seu sacrossanto apartamento. Como podia
tanto atrevimento? Considerou aquilo uma invasão de propriedade. Afinal, diz um
de seus manda_sacra_mentos: “seu direito vai até onde começa o meu”.
Carregou a 12 e
desceu. Decidido. Não aguentaria desaforo. Menos, ainda, invasão da sua
propriedade.
III
Chegou no 205.
Chutou a porta. Deu a sentença: “seu direito vai até onde começa o meu”.
Ela tentou
explicar que era ‘do bem’, que só estava cumprindo o mantramandamento universal:
“faça aos outros aquilo que gostaria que os outros fizessem a você”. Tentou
explicar que ela estava no direito dela etc. etc. etc.
V
O cheiro de alho
foi substituído pelo cheiro de pólvora. A 12 ficou quente e mais leve. Ele
também se sentiu mais leve, realizado.
A faxineira hoje
teria que usar o hidrante pra limpar o chão.
Alho por olho.
Dente por cabeça.
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