I
O pobre e o rico foram ao supermercado fazer suas compras.
II
O pobre fez a compra do mês. Calculadora (emprestada) em
mãos. Muitos cálculos, muitas comparações. Um carrinho de 500 mangos, no grito.
Isso daria pro mês? Como pagaria? Preocupações...
O rico fez a comprinha do final de semana, coisas mais
emergenciais. Dois carrinhos, 2 mil... numa boa. Talvez a compra fosse
suficiente para aguentar até quarta-feira, quando faria uma compra mais farta.
Sorrisos despreocupados...
III
Ao passarem no caixa, o pobre ganha 5 cupons para concorrer
a vários prêmios. O rico ganha 20. O caixa deseja boa sorte a ambos.
Ambos (isto é, cada um!), cheios de fé, pedem,
confiantemente, a Deus que lhe dê ao
menos o carro e a casa. Afinal, precisam muito. E, muito mais, merecem!
III
Chega o dia do sorteio. O pobre e o rico lá estão. Lado a
lado. Não se conhecem. Ambos cheios de fé e municiados com alguns amuletos que,
criam, facilitariam a intervenção metafísica que determinaria o resultado
favorável a um dos cada ambos.
O caixa do mercado deseja, igualmente, sorte a ambos. Porém,
está torcendo para a própria mãe, que, devota de Santo Expedito, concorre com 2
bilhetes.
IV
O rico ganha o carro e a casa. Agradece muito a Deus por ter
atendido suas preces e por ter feito a justiça. Agradece pela benção de poder
mostrar aos ímpios a vantagem de ter uma vida inquestionavelmente reta e
estruturada. Provaria aos néscios a justiça que não é a dos homens. Poderia
testemunhar, com dados empíricos, que poucos são os escolhidos e que o
escolhido é ele. Cumpre-se aquela promessa de que nunca se viu um justo
desamparado nem sua descendência mendigar o pão. Transubstanciação
consubstanciada da parábola dos talentos!
O pobre, endignado
e individado, faz 1 21 a cobrar para
intimar Deus, afinal, estava a ponto de cometer 1 121. Como assim? Ele é o que
mais precisa! Está desempregado. Ameaçado de despejo. Casamento desabando. E
quem ganha os dois maiores e melhores prêmios é um rico, que já tem de tudo e
mais um pouco... Como assim? Cadê a justiça divina como prova da retribuição e do
reconhecimento de sua reta e inquestionável conduta ética e religiosa? Como
fica aquela de que nunca se viu um justo desamparado nem sua descendência
mendigar o pão? Como testemunharia,
empiricamente, aos seus vizinhos que é um dos poucos escolhidos?
V
O rico ficou ainda mais cheio de fé.
O pobre ficou muito enfezado.
VI
Deus, diante da irada interpelação (althusseriana) do pobre
e dos entusiásticos regozijos do rico, responde didaticamente (como se o
fizesse para uma criança de -6 meses) que não beneficiou nem prejudicou
ninguém, pois, afinal, todos são igualmente filhos. Apenas desejou, imparcial e
igualmente, boa sorte a ambos. Era apenas uma questão de probabilidade estatística.
Mas, todavia, porém, entretanto, contudo... essa resposta
não adiantou nada. O rico teve ainda mais certeza que é um, ou melhor, o
abençoado. O pobre disse a si mesmo que no próximo sorteio seria atendido em
suas infalíveis tridiárias preces.
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