"E A CASA CAIU...
O começo de tudo
ela não se lembra muito bem.
Lembra-se de que
várias coisas em sua vida foram diferentes da vida das demais colegas. Dos
colegas também.
Uma dessas
diferenças é que ela não pôde frequentar escola. O motivo? Ela tinha
“problema”, “problema na cabeça” – dizia sua mãe. “Problema de cabeça”, dizia o
pai. Ela sempre se olhou no espelho e nunca conseguiu identificar o tal problema,
mas, se seu pai e sua mãe diziam isso é porque isso era verdade, mesmo.
Sua avó sempre lhe
dizia o mantra-mandamento: “Os três pês que sempre têm razão: o pai, o padre e
o patrão.”
Acabou a infância.
Veio a adolescência, que logo passou. Considerava-se, já há algum tempo, na
idade adulta. Já estava quase entrando na pós-modernidade. Apesar disso,
tratavam-na como uma criança. Tipo Peter
Pan. Só que na vida real.
Ela tinha vontade
de ter um relacionamento com alguém. Tipo, sei lá, namorar, casar, ficar,
procriar, estar, juntar, etceteretar... Tipo todas as gurias que conhecia. Mas,
na sua casa, sempre lhe diziam que ela não podia, pois não sabia – e jamais
aprenderia – ler e escrever.
Não saber ler e
escrever era a razão para os muitos e recorrentes nãos que ela recebia quando (in)certas
coisas queria.
Mas, todavia,
porém, contudo, entretanto, esse argumento, no entanto, não lhe parecia
convincente. Nem coerente. Menos, ainda, pertinente. Sua avó, que não sabia ler
nem escrever, foi casada umas dez vezes e teve uns quinze filhos, sem contar os
que não vingaram, os que foram doados, os que não foram registrados, os que
eram de outros namorados...
Mas, por que, entre
as pessoas da sua geração, só ela não sabia ler e escrever? A resposta era a
mesma de sempre para quase tudo: é porque ela tem problema na cabeça. Ou de
cabeça.
Por isso ela não
pôde frequentar escola. Por isso ela não aprendeu a ler e a escrever. Por isso
ela nunca pudera. Nunca pôde. Nunca pode. E nunca poderá. Por isso ela estava
condenada a viver sempre só, sozinha, solteira. Celibato involuntário perpétuo.
Exatamente o inverso dos clássicos e habituais finais felizes de contos de
fadas e de ditas histórias infantis.
Afinal, por “desígnio
superior”, ela nascera com problema de cabeça. Ou na cabeça. Logo, tudo que
desse problema decorre é uma questão metafísica, transcendente. E tudo decorria
desse problema.
Era um impasse. Era
um dilema. A sua família, produto de seu tempo, agia no sentido de proteger
incondicionalmente a filha querida. Afinal, o maior medo da mãe era a filha,
aquela eterna criança, aparecer grávida!
Mas, a filha também
era produto de um tempo próprio. Ou, para os menos progressistas, de um impróprio
tempo. Um dia ela ouviu alguém, no ponto do ônibus, dizer: “quem tem um porquê
supera qualquer como”.
Ela tinha vários
porquês. Superaria todos os comos. Estava decidida. Causaria incômodos. Iria, independentemente
de quem fosse (se) incomodar, fazer o que muitas mulheres fazem e que ela quase
sempre teve vontade. Afinal, sempre ouvira algumas pessoas dizerem que aquilo
era “normal”, “natural”. Por que, então, só ela era proibida? Então, por que só
a ela aquilo era proibido?
Demorou, deu
trabalho, mas ela conseguiu. Convenceu um rapaz (considerado – pela família
dela – salafrário, mentecapto, energúmeno, bandido, em suma, perigoso)
que morava perto de sua casa. Deu trabalho, mas ele topou. Fizeram tudo bem
escondidinho. Deu trabalho, mas, ambos conseguiram. Ela jurou (pela própria mãe
morta de ponta-cabeça atrás da porta) pra ele que não contaria a ninguém e que
assumiria as consequências todas sozinha. Foram alguns meses de tentativas, até
que um dia ela conseguiu. Agora era uma mulher plenamente realizada!
Agora o desafio era
dar a notícia que causaria instantânea falência múltipla dos órgãos na mãe e
infarto redundantemente full_minante
no pai.
Resoluta, chegou em
casa e, num tom grave e à queima-roupa, disse: “Mãe, quero falar sobre algo
muito sério que aconteceu comigo! Realizei meu maior sonho!”
“Aprendi a ler e a
escrever!”
SILVA, C. R. E a casa caiu.... Mosaico, São José do Rio Preto, v. 15,
n. 1, p. 9-13, 2016.
Muito bom. parabéns!.
ResponderExcluirvlw
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