sexta-feira, 23 de outubro de 2020

horakhulart

 






Então, a oracular reposta que obteve foi:


“Conhece a ti mesmo.”


Ora, ora! Oráculo desaforado. Que extremo mau gosto.









ypes

 





ipês

flores

naturalmente

chão neon







deyerba

 






VERBO

,


no início era

.


Depois, a verba averbou

.


Nova era

.


Era nova

.


E tudo passou a ser uma questão de

VERBA








quinta-feira, 15 de outubro de 2020

literalleitura

 



Era uma vez um tempo muito remoto. Tudo era remoto. Meditação remota. Cirurgias remotas. Reiki remoto. Cerimônias remotas. Conselhos remotos. Cultos remotos. Remorsos remotos. Telepatia remota. Concílios Remotos. Transes remotos. Controles remotos. Ignorâncias remotas. EaD remoto. Interações remotas. Remoto era tudo. E, como não (será, mesmo, que não?) poderia ser diferente, até as aulas presenciais, remotas. Remotamente remotas.

O sinal de entrada, remoto, soou. O remoto professor, remotamente, começou a sua aula remota. Fez a chamada remotamente. Apresentou os costumeiros prolegômenos. Porém, o arquivo com a apresentação da aula, gravado na área de trabalho do computador, não abriu. Tentou o estepe, no pendrive l, que não foi reconhecido. Ou não se reconheceu? Tentou o segundo pendrive, becape do backup, que se recusou a remotear e preferiu formatado ser. O professor, então, apelou para os céus, ou melhor, para as nuvens, que também não responderam, talvez por, deliberadamente, terem optado por um ato de descondensação, ou pelo fato de a internet, intencionalmente, ter (se) evaporizado.

Diante desses previsíveis imprevistos, o professor, como sempre, tinha que “manejar” a sala, já que, por um lado, os agentes de organização escolar estavam bem remotos, mas, por outro, a Grande Irmã, pelas rédeas sociais, remotamente vigiava todo mundo em todo o mundo.

Por dar aula de mais de 30 matérias, de Biológicas, Exatas e Humanas, para mais de 400 salas e para mais de “cinquenta mil manos”, o professor, diante dos incidentes com as tics, sequer lembrava o tema daquela aula. Das outras também não. Não era dia de nada, assim, o professor instituiu, naquele exato instante, o Dia Intergaláctico da Leitura e tomou essa cívica data como mote para improvisar uma atividade para preencher os 50 notúrnicos minutos-luz de uma aula-hora.

Começou, então, a desfilar nomes e breves comentários sobre alguns clássicos que ele considerava importantes, ou melhor, imprescindíveis numa cesta básica literária de alta qualidade, mesmo em pandêmicos e pandemônicos tempos da dita nova anormalidade do covidoceno.

— Um dos livros que eu gostaria de apresentar para vocês é “O alienista”, de Machado de Assis, um livro q

— Já ouvi falar desse livro, prof! Nossa! É bem loco esse, né? – Disse, sem levantar a mão e sem pedir licença, uma estudante.

Após essa indesejável interrupção, o professor retomou a sua explanação sobre o livro: Bom, como eu estava falando... – E concluiu sua sinopse sobre esse livro.

— Um outro livro que eu quero comentar é de autoria de Cervantes, “Dom Quixote de la

— Mancha! Vixe, prof, desse também eu já ouvi falar!

E a saga continuou. O professor foi apresentando – ou tentando apresentar – sua cesta básica literária.

— “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus, uma

— Pó crê! Muito doido! Desse também, prof, já ouvi falar! Aliás, quem nunca ouviu falar desse?!

— “O apocalipse dos trabalhadores”, de Valter Hugo Mãe, um autor que tem

— Mai nem, prof, mai nem que eu não ouvi sobre esse! Óbvio que já!

— “Um conto de duas cidades”, do renomado

— Do Dickens, prof! Foi o melhor dos contos! Lógico que já ouvi falar dessa obra!

— Outro é uma coletânea de textos de autores russos

— “Salada russa”, prof! “Salada russa”! Também já ouvi falar dele!

— De Eduardo Galeano, “O livro dos abraços”. Esse livr

— Aí, sim, prof! Esse é o cara! É pira total! Esse também está na minha lista.

— “As vinhas da ira”, de Steinbeck, um autor

— Muito bom esse, prof!, também já ouvi falar desse daí! Ele foi perseguido, né?

— De Elvira Lindo, “Manolito

— Gafotas! Ouvi falar muito bem desse livro, prof! Uma vez eu quase peguei ele pra ler!

— “Enterrem meu coração na curva do rio”, de Dee Brown, da década d

— Esse é massa, prof! Já escutei sobre ele também!

— “O homem que corrompeu Hadleyburg”, de Mark Twain, um autor estaduni

— Como não, prof!? Certamente ele se inspirou na cidade em que moro! Claro que já ouvi falar!

— Jane Austen, “Orgulho e preconceito”

— Ah!, esse também me soa muito familiar! Sem dúvida, já ouvi falar!

— “Os ricos também morrem”, de Ferréz, de São Paulo, da zona

— Quebrada Sul! Tô ligada nesse aí também, prof! Literatura bem marginal, né!?

— De Leonardo Padura, “O homem que amava os cachorros”, um livro q

— Classicaço, véi, classicaço total! Lógico que já ouvi falar desse também, prof!

— “Crime e castigo”, de Dostoy

— evsky! Autor de uma muca de livros! Até o Wandi Doratiotto fez uma música pra ele!

— De um autor contemporâneo, Mia Couto, o livro “Venenos de deus, remédios do diabo”, lanç

— Fala sério, prof! Esse também é firmeza! Até a capa é coisa fina! Eu até achava que o Mia era brasileiro, prof, vai vendo...

— Agora, vou tentar falar para vocês sobre um famosíssimo conjunto de contos, intitulado

— Já sei, prof! “As mil e uma noites”! Desse também eu já ouvi falar! Acho que todo mundo deveria ler esse livro, prof!

A cada título ou autor que o professor anunciava, aquela ‘Macabéa Desvairada’, híbrido ser, toda empolgada, dizia a mesma coisa, com alguma variação de tom: “Desse eu já ouvi falar, prof!”

Em um determinado momento, o professor, muito irritado com essas indesejáveis e impertinentes intervenções, e também receoso diante do risco de um eventual – aliás, iminente – spoiler, antecipou-se, interrompendo não só a sua magistral exposição literária, mas, também, aquele mantra macabeico desvairadus, e deblaterou:

— Escuta aqui, o dona ‘já ouvi falar’: todos os livros que eu menciono você diz que ‘já ouviu falar’. Você só ‘ouviu falar’? Nunca leu nenhum, não? Dizendo doutra forma, nem um você leu?

— Não, prof.  E não pretendo, por ora, lê-los. Ademais, considerando que hoje é o Dia Intergaláctico da Leitura, eu gostaria de, oportuna e publicamente, registrar que, se não fossem umas insistentes profas que, durante as suas aulas, liam para a gente ouvir, nem da existência dessas obras eu saberia e, então, sequer eu poderia, como hoje, com muito orgulho, dizer-lhe que delas ‘já ouvi falar’.

Antes que o professor tomasse as remotas providências disciplinares cabíveis em tempos de ensino remoto, ela mandou mais uma carga remota:

— E, prof, se você falar de algum livro mais, mas daqueles livros dos bons, que, porventura – uma hipótese remotíssima –, eu ainda não tenha ouvido falar, asseguro-lhe, sem titubear, que, se eu tivesse continuado a ter aulas com elas, eu, indubitavelmente, já haveria de ter – pretérito do futuro de presente mais-que-imperfeito – ouvido falar deles, ainda que remotamente. Ademais, prof, não me desafie, não, porque nessa minha “bolsa amarela”, que trago aqui nessa minha enciclopédica cachola, há muitos outros títulos, ou melhor, livros, dos quais, com muito orgulho, ‘eu já ouvi falar’.

 

Singela, despretensiosa e remotamente dedicado às três mosqueteiras andantes transgeracionais da literaleitura, inclusive em tempos e temporalidades remotas: A.I.D.M, F. R. P e L. F. L.

 

Literalleitura