A viatura passa. Os agentes a gente encarando: ‘bandidos’,
dizpensam pelo olhar. Passa. Mais a frente: para.
Agentes descem. A gente assiste.
Com os pés abordam pessoas que dormem na calçada sobre
papelões, como colchões, sob papelões, como cobertores.
Cidadania de papelão; papelão de cidadania.
Os manos – tidos e tratados como andarilhos, vagabundos,
mendigos, pedintes, escória, lumpem, enfim, chagas sociais – não acordam.
Agentes intensificam o uso dos pés. A gente?
Bom, a gente – todas pessoas (auto)consideradas e
(auto)apresentadas como ‘pessoas de bem’, que tá do lado do bem, com pitadas de
judaísmo, cristianismo, weberianismo, marxismo e outros ingredientes –, a
gente, todas comportadas, assistimos a tudo passivamente, com a consciência
crítica bem guardada dentro da blindada caixa craniana.
Agentes dizem pra gente: “- Cidadões, isto é para segurança de
vocês e deles mesmos!”
A gente foi até promovido! Há pouco fôramos olhados como
bãdidos e agora somos chamados de “cidadões”.
A gente, cidadãos civilizados, domestificados, conformados,
promovidos a ‘cidadões’, agimos como se estivéssemos num teatro de rua
assistindo, pazscifivamente, a uma peça de inspiração káfka de esmagamento de
baratas.
Cidadania de papelão, papelão de cidadania: coisa de outra
dimenstões: nessa encenação a gente fomos até tratado como ‘cidadões’ pelos
agentes.
Domingo, à noite, de barriguinha bem cheia e bem
agasalhadinho, irei à cerimônia religiosa e, sem parcimônia, rezorarei por
eles, os baratas. Na terceira segunda-feira do mês que vem, à noite, irei à
reunião do partido e farei um discurso inflamado contra a pobreza e a violência
ativa dos agentes e da violência passiva da gente. Na campanha do agasalho
darei umas blusas descartáveis para eles. No natal juntarei umas moedinhas e
darei um panetone para eles. Prometo tudo isso para mim mesmo; se eu não
cumprir, só eu que ficareistou sabendo [Isso de até lá eu não sou um deles]. O
ônibus para, abre a porta; entro com a consciência límpida e tranquila, digo
bom dia para a motorista: bola pra frente. Antibrechtianamente: antes eles do
que eu. Afinal, baratas sai caro!