terça-feira, 27 de dezembro de 2016

carno





I

Estava preocupada. Para além da questão da autoafirmação ou da autoestima, estava a questão das condições materiais de vida (que, em alguma medida, garantia parte das condições simbólicas da existência existencial), ainda que tivesse que dizer que, acima de tudo e de todos, seu objetivo único e principal era (ou seria!?) garantir a satisfação e superar as expectativas do cliente. Inegavelmente, quando estivesse falando para a empresa, a finalidade última era vender, preferencial mas não necessariamente deixando a clientela satisfeita. Coisas da vida, coisas devida...

Estava preocupada. Precisava vender. Após algum tempo longe do palco, como seria sua atuação diante das luzes da ribalta?



II

‘Como vovó já dizia’, a melhor defesa às vezes é um excelente ataque. Mas, em dados casos, o melhor ataque pode ser uma infalível defesa. Ambiguidades linguais... coisas da vida: ambígua...



III

Chegado o momento, vestiu a fantasia, ajeitou a máscara, incorporou a personagem e entrou em cena. Regaçô! Detonô! Arrasô!

Vendeu tanto, tanto vendeu, que necessário foi importar mercadorias. Até para ditos mendigos, pessoas em situação de rua, finadas ou pessoas em outras condições desafiadoras ela vendeu rodantes. O negócio era olhar pro copo meio vazio e fazer de conta que estava meio cheio... E estava.



IV

Com essa façanha, a cidade passou a ser mais viva, sorridente! Até os cavalos ganharam com isso, pois foram alforriados, já que não mais havia carroceiros na cidade: todos motorizados... Foram criados empregos nas áreas de assistência técnica, venda de acessórios, combustíveis etc.  Quase todo mundo estava se sentindo, na média, crasse auta!

Mas, aí surgiu um problema, previsível, porém, enquanto possível, ignorável: as pessoas não mais podiam transitar com seus rodantes, pois não havia espaço para tantos carros. Nem mesmo nas larguíssimas avenidas batizadas com pomposos nomes indígenas era possível transitar motorizadamente.

Na análise de alguns ex-pecialistas, o trânsito da cidade Emquestão poderia ser comparado ao de São Paulo, ressalvado, evidentemente, o fato de que Emquestão tinha um diferencial em relação não só a São Paulo, mas ao Universo: ainda oferecia serviço de Orkut! Emquestão passou a ser a cidade com o maior número – em termos absolutos e relativos – de rodantes do Planeta Galáxia.



V

Mas, num dado momento, ela chegara a um impasse: não mais tinha como satisfazer, menos ainda, superar as expectativas dos clientes, pois o fato de possuir o carro não implicava necessariamente a possibilidade de transitar com eles pelos logradouros de Emquestão. Mas, para a empresa, isso não interessava, não era um argumento válido. O que interessava era que os índices de venda dela – vendedora – aumentassem ou, ao menos, fossem mantidos.

Mas, como conseguir isso? Criatividade, inegavelmente, com ética, evidentemente! – conclui ela. Mãos àbobra...

PROMOÇÃO DE ANO NOVO: Clientes que comprassem carro com ela teriam prioridade garantida no trânsito e ganhariam ruas particulares para poderem trafegar sem os incômodos inerentes aos dilemas de mobilidade urbana enfrentados por megacidades, como Emquestão. Palavra de escoteiro! Ou melhor, de vendedor! (Deixemos o pescador fora disso!)



VI

Desafio vencido. Ainda sabia atuar e, se necessário, encenar. No grande teatro da vida isso é vital.

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