sábado, 28 de abril de 2018

E a casa caiu...





"E A CASA CAIU...
                              

O começo de tudo ela não se lembra muito bem.

Lembra-se de que várias coisas em sua vida foram diferentes da vida das demais colegas. Dos colegas também.

Uma dessas diferenças é que ela não pôde frequentar escola. O motivo? Ela tinha “problema”, “problema na cabeça” – dizia sua mãe. “Problema de cabeça”, dizia o pai. Ela sempre se olhou no espelho e nunca conseguiu identificar o tal problema, mas, se seu pai e sua mãe diziam isso é porque isso era verdade, mesmo.
 
Sua avó sempre lhe dizia o mantra-mandamento: “Os três pês que sempre têm razão: o pai, o padre e o patrão.” 

Acabou a infância. Veio a adolescência, que logo passou. Considerava-se, já há algum tempo, na idade adulta. Já estava quase entrando na pós-modernidade. Apesar disso, tratavam-na como uma criança. Tipo Peter Pan. Só que na vida real.

Ela tinha vontade de ter um relacionamento com alguém. Tipo, sei lá, namorar, casar, ficar, procriar, estar, juntar, etceteretar... Tipo todas as gurias que conhecia. Mas, na sua casa, sempre lhe diziam que ela não podia, pois não sabia – e jamais aprenderia – ler e escrever.

Não saber ler e escrever era a razão para os muitos e recorrentes nãos que ela recebia quando (in)certas coisas queria. 

Mas, todavia, porém, contudo, entretanto, esse argumento, no entanto, não lhe parecia convincente. Nem coerente. Menos, ainda, pertinente. Sua avó, que não sabia ler nem escrever, foi casada umas dez vezes e teve uns quinze filhos, sem contar os que não vingaram, os que foram doados, os que não foram registrados, os que eram de outros namorados...

Mas, por que, entre as pessoas da sua geração, só ela não sabia ler e escrever? A resposta era a mesma de sempre para quase tudo: é porque ela tem problema na cabeça. Ou de cabeça.

Por isso ela não pôde frequentar escola. Por isso ela não aprendeu a ler e a escrever. Por isso ela nunca pudera. Nunca pôde. Nunca pode. E nunca poderá. Por isso ela estava condenada a viver sempre só, sozinha, solteira. Celibato involuntário perpétuo. Exatamente o inverso dos clássicos e habituais finais felizes de contos de fadas e de ditas histórias infantis.

Afinal, por “desígnio superior”, ela nascera com problema de cabeça. Ou na cabeça. Logo, tudo que desse problema decorre é uma questão metafísica, transcendente. E tudo decorria desse problema.

Era um impasse. Era um dilema. A sua família, produto de seu tempo, agia no sentido de proteger incondicionalmente a filha querida. Afinal, o maior medo da mãe era a filha, aquela eterna criança, aparecer grávida! 

Mas, a filha também era produto de um tempo próprio. Ou, para os menos progressistas, de um impróprio tempo. Um dia ela ouviu alguém, no ponto do ônibus, dizer: “quem tem um porquê supera qualquer como”.

Ela tinha vários porquês. Superaria todos os comos. Estava decidida. Causaria incômodos. Iria, independentemente de quem fosse (se) incomodar, fazer o que muitas mulheres fazem e que ela quase sempre teve vontade. Afinal, sempre ouvira algumas pessoas dizerem que aquilo era “normal”, “natural”. Por que, então, só ela era proibida? Então, por que só a ela aquilo era proibido? 

Demorou, deu trabalho, mas ela conseguiu. Convenceu um rapaz (considerado – pela família dela – salafrário, mentecapto, energúmeno, bandido, em suma, perigoso) que morava perto de sua casa. Deu trabalho, mas ele topou. Fizeram tudo bem escondidinho. Deu trabalho, mas, ambos conseguiram. Ela jurou (pela própria mãe morta de ponta-cabeça atrás da porta) pra ele que não contaria a ninguém e que assumiria as consequências todas sozinha. Foram alguns meses de tentativas, até que um dia ela conseguiu. Agora era uma mulher plenamente realizada!

Agora o desafio era dar a notícia que causaria instantânea falência múltipla dos órgãos na mãe e infarto redundantementefull_minante no pai.  

Resoluta, chegou em casa e, num tom grave e à queima-roupa, disse: “Mãe, quero falar sobre algo muito sério que aconteceu comigo! Realizei meu maior sonho!”

“Aprendi a ler e a escrever!”



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