sábado, 14 de abril de 2018

filhisteus





                                                            I


O pobre e o rico foram ao supermercado fazer suas compras.



II

O pobre fez a compra do mês. Calculadora (emprestada) em mãos. Muitos cálculos, muitas comparações. Um carrinho de 500 mangos, no grito. Isso daria pro mês? Como pagaria? Preocupações...

O rico fez a comprinha do final de semana, coisas mais emergenciais. Dois carrinhos, 2 mil... numa boa. Talvez a compra fosse suficiente para aguentar até quarta-feira, quando faria uma compra mais farta. Sorrisos despreocupados...




III

Ao passarem no caixa, o pobre ganha 5 cupons para concorrer a vários prêmios. O rico ganha 20. O caixa deseja boa sorte a ambos.

Ambos (isto é, cada um!), cheios de fé, pedem, confiantemente, a Deus que lhe dê ao menos o carro e a casa. Afinal, precisam muito. E, muito mais, merecem!




III

Chega o dia do sorteio. O pobre e o rico lá estão. Lado a lado. Não se conhecem. Ambos cheios de fé e municiados com alguns amuletos que, criam, facilitariam a intervenção metafísica que determinaria o resultado favorável a um dos cada ambos.

O caixa do mercado deseja, igualmente, sorte a ambos. Porém, está torcendo para a própria mãe, que, devota de Santo Expedito, concorre com 2 bilhetes.




IV

O rico ganha o carro e a casa. Agradece muito a Deus por ter atendido suas preces e por ter feito a justiça. Agradece pela benção de poder mostrar aos ímpios a vantagem de ter uma vida inquestionavelmente reta e estruturada. Provaria aos néscios a justiça que não é a dos homens. Poderia testemunhar, com dados empíricos, que poucos são os escolhidos e que o escolhido é ele. Cumpre-se aquela promessa de que nunca se viu um justo desamparado nem sua descendência mendigar o pão. Transubstanciação consubstanciada da parábola dos talentos!

O pobre, endignado e individado, faz 1 21 a cobrar para intimar Deus, afinal, estava a ponto de cometer 1 121. Como assim? Ele é o que mais precisa! Está desempregado. Ameaçado de despejo. Casamento desabando. E quem ganha os dois maiores e melhores prêmios é um rico, que já tem de tudo e mais um pouco... Como assim? Cadê a justiça divina como prova da retribuição e do reconhecimento de sua reta e inquestionável conduta ética e religiosa? Como fica aquela de que nunca se viu um justo desamparado nem sua descendência mendigar o pão?  Como testemunharia, empiricamente, aos seus vizinhos que é um dos poucos escolhidos?




V

O rico ficou ainda mais cheio de fé.

O pobre ficou muito enfezado.




VI

Deus, diante da irada interpelação (althusseriana) do pobre e dos entusiásticos regozijos do rico, responde didaticamente (como se o fizesse para uma criança de -6 meses) que não beneficiou nem prejudicou ninguém, pois, afinal, todos são igualmente filhos. Apenas desejou, imparcial e igualmente, boa sorte a ambos. Era apenas uma questão de probabilidade estatística.

Mas, todavia, porém, entretanto, contudo... essa resposta não adiantou nada. O rico teve ainda mais certeza que é um, ou melhor, o abençoado. O pobre disse a si mesmo que no próximo sorteio seria atendido em suas infalíveis tridiárias preces.






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